Jornal da Tarde, 03 de Março de 2000
Fiel Transcrição:
Quem quer a volta dos anos de chumbo?
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Gilberto de Mello Kujawski Na democracia não basta conquistar direitos. É preciso saber defendê-los com unhas e dentes das ameaças posteriores que se levantam contra sua integridade. Assim, não bastou que a autonomia e as prerrogativas do Ministério Público fossem asseguradas, depois de muita luta, pela Carta de 88. Agora, a pretexto de defender a privacidade do cidadão, atenta-se, descaradamente, contra o princípio da publicidade da investigação policial e judicial, pretendendo-se proibir a divulgação, no curso da investigação, de fatos e informações que atinjam a vida privada, a intimidade e a honra das pessoas. É a famigerada "Lei da Mordaça" que resvalou, como uma excrescência, para o texto do projeto de reforma Judiciária. Bem entendido, a privacidade do cidadão é sagrada e tem de ser respeitada sempre por todos, a começar das autoridades. Mas, para coibir as agressões à privacidade, quando envolvam a honra e a imagem da pessoa, já existe no Código Penal todo um capítulo de crimes contra a honra, além da legislação complementar, inclusive em matéria de imprensa. De onde força a concluir que a tal "Lei da Mordaça" se inspira em razão outra, de caráter sobejamente inconfessável, e que se resume no propósito de cercear o direito de informação. Ora, a apuração dos delitos de ação pública não pode ser transformada numa sessão de maçonaria ou num conciliábulo da máfia, secreto e indevassável. Verdade é que repercutem dolorosamente na consciência da mídia episódios infamantes como o da Escola Base. É certo, mas é preciso lembrar que, para uma Escola Base, se contam muitos outros casos que, sem a pressão da imprensa, teriam já passado para o limbo: os Anões do Orçamento, o escândalo dos precatórios, o deputado Hildebrando Pascoal, o juiz Nicolau, o deputado Sérgio Naya e a máfia dos fiscais e vereadores em São Paulo, para lembrar só alguns. Parte dos políticos, do governo federal e do sistema financeiro está unida não somente para amordaçar o Ministério Público, mas também para castrá-lo. Parlamentares do PFL e outros do PSDB querem que a escolha do chefe do Ministério Público recaia sobre pessoa estranha à carreira de promotor público, sujeita à indicação do presidente da República ou do governador de Estado. Quer dizer, além de presumir-se, grosseiramente, que nos quadros do Ministério Público não exista ninguém |
capacitado para dirigi-lo, sujeita o titular da ação penal, o promotor, ao sabor das injunções e dos interesses do Executivo, ferindo de morte a razão de ser do Ministério Público, que é a sua total e incondicional autonomia. Outra emenda, proveniente da mesma fonte
poluída, prevê que as promoções dos procuradores sejam determinadas não mais pelo Conselho Superior e pela decisão do procurador-geral, e sim pelo cabeça do Executivo, o presidente da República ou o governador. Ou seja, diariamente, teríamos a noticia de que um candidato de mérito comprovado, ou de antiguidade indiscutível, foi preterido em favor de um sabujo devidamente afinado com as intenções dos políticos e suas maquiavélicas transações. É muita ignorância e muito cinismo de um lance só. O que essas três medidas, principalmente as duas últimas, representam de regressão institucional salta aos olhos de qualquer um. Querem anular o Ministério Público, transformá-lo num objeto decorativo, numa sinistra caricatura de si mesmo. A partir da aprovação daquelas medidas, não mais existirá entre nós um órgão público isento de suspeição para apurar crimes em que estejam envolvidos políticos de perfil particular ou os barões ladrões que pululam num sistema capitalista ainda imaturo e desestruturado como o nosso, no qual impera a lei do mais forte e do vale tudo por dinheiro. A sociedade ficaria à mercê dos mafiosos do poder econômico travestidos de autoridades públicas, como os Nicolaus, os Hildebrandos e os Nayas. E isso na presente circunstância em que o crime comum e o crime organizado se dão as mãos, quase que transformando nosso País em terra de ninguém. A corrupção campearia solta, mais ainda do que agora, e as questões lesivas ao patrimônio e ao interesse públicos seriam resolvidas com um simples telefonema do presidente da República ou do governador para o promotor ou procurador encarregado da ação penal. Estes senhores parlamentares que patrocinam tais emendas e dispositivos de lei são trogloditas sem a menor sensibilidade moral e o mais elementar senso jurídico, vendilhões da democracia que conspiram para mergulhar nosso País novamente nos anos de chumbo, dos quais pensávamos estar livres para todo o sempre.
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