Jornal da Tarde, 31 de Dezembro de 1999
Fiel Transcrição:
Estrelismo e impunidade
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O ano de 1999 começou sob o signo de duas Comissões Parlamentares de Inquérito no Senado Federal - uma sobre o Poder Judiciário e outra sobre as relações do Banco Central com instituições privadas no mercado financeiro. Ao longo do ano, outra CPI, da Câmara dos Deputados, terminou se impondo sobre as outras nas manchetes - a do crime organizado. As investigações da CPI do Judiciário, criada pelo presidente do Congresso, senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), reafirmaram um antigo vício brasileiro: nossas doenças institucionais são facilmente diagnosticadas, seus agentes identificados sem dificuldade e todos sabem que remédios podem curá-las. Mas falta quem leve adiante a terapia. A CPI do Judiciário nada descobriu que não se soubesse. Que segredo havia no envolvimento de juízes com delinqüentes? Ainda assim, de suas investigações, fortemente complementadas pelas da CPI do Narcotráfico, emergiu um diagnóstico oficial sobre o estado de profunda deterioração do Judiciário brasileiro. "De quebra", os senadores da CPI terminaram tropeçando nas relações perigosas de um colega, Luiz Estevão (PMDB-DF), com o responsável por um dos monumentos máximos à corrupção jamais erigidos no Brasil, o juiz Nicolau dos Santos Neto que, com o concurso do senador, ergueu o prédio do TRT de São Paulo. O quadro daí resultante não pode mais ser ignorado e recomenda a urgente reforma do Judiciário, e ainda pode livrar o País de mais um político que se serve melhor do que nos serve. A resultados mais frustrantes chegou a CPI criada pelo presidente do partido de Luiz Estevão, Jáder Barbalho (PMDB-PA), para apurar favorecimento da direção do Banco Central aos bancos Marka e FonteCidam na compra de dólares durante a desvalorização do real. A CPI do Sistema Financeiro, que provocou estardalhaço no primeiro semestre e praticamente saiu do noticiário no segundo, propiciou uma antologia dos erros mais comuns das CPIs, criadas para permitir ao Congresso investigar irregularidades e aperfeiçoar as instituições, passando os resultados desse trabalho para o Ministério Público. A complexidade técnica dos mecanismos do sistema financeiro, para a para a qual os senadores não estavam preparados, expôs um problema de todas as CPIs: a falta |
de preparo de seus membros e a ausência de uma assessoria especializada para evitar o vexame em que se transformam os depoimentos de testemunhas que sabem muito bem o que responder sobre o assunto tratado a parlamentares que não têm ideia do que perguntam. O rumoroso episódio da ordem de prisão dada ao ex-presidente do Banco Central, Francisco Lopes, escalado para ser um dos bodes expiatórios da Comissão, trouxe a lume outro de seus defeitos congênitos: o atropelamento dos direitos fundamentais da cidadania para satisfazer o ímpeto exibicio-nista de parlamentares investidos da fúria de inquisidores. Desse vício não se viu livre sequer a CPI do Narcotráfico, que, mesmo composta predominantemente pelo baixo clero da Câmara, prestou um grande serviço ao País ao revelar a contaminação dos Três Poderes republicanos pelo crime organizado, que, segundo os deputados, já emprega (e arma), clandestinamente, 200 mil brasileiros. O sucesso de público das CPIs resulta da ineficiência da Justiça para punir culpados num país onde, infelizmente, a impunidade é regra. Mas também excita os ânimos dos parlamentares, que dependem da exibição de sua imagem e da divulgação de suas palavras nos meios de comunicação para assegurar a reeleição ou a promoção a um cargo eletivo mais importante. Esse exibicionismo muitas vezes os leva a atropelar o direito de defesa dos investigados e também facilita a eliminação de provas pela divulgação antecipada de seus passos. Isso termina por contribuir para a impunidade dos culpados, dificultando a pesquisa de provas que possa haver contra eles pelo Ministério Público e facilitando a argumentação da defesa. Para que as CPIs aperfeiçoem de fato as instituições democráticas, o Congresso precisa encontrar meios de reduzir o estrelismo de seus membros sem lhes tirar o ânimo de investigar e expor as mazelas do sistema e, sobretudo, lembrar de que sua função não é fazer o papel de polícia, mas sim elevar ao primeiro plano a parte das CPIs que nunca sai das gavetas, que é a que justifica a sua existência: as resoluções finais, onde se sugere as reformas institucionais destinadas a impedir que os crimes que investigam aconteçam com tanta facilidade e a melhorar nossas leis para que, no fim, os culpados não saiam impunes, como sempre. |